Sou uma pessoa de poucas palavras e muitas entrelinhas..

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Um dia quase normal na vida de Getúlio


Aqueles livros todos amontoados pela sala, naquele momento, o aborreciam bastante. Pensou naquelas bobagens que, ainda ontem, o enchiam de vida. Mas hoje.
 O tédio o tomou como um tsunami.
 Não procurou pela euforia do dia anterior. Sabia que não iria encontrá-la. E nem queria. Tinha quase nojo daquele eu de ontem. Apalermado, estúpido.
 Esticou-se todo pra pegar um daqueles livros, qualquer um, qualquer merda serve nessas horas. Jogou o livro sobre as pernas e o deixou lá, repousando.
 Olhou para suas pernas, se perdeu nelas. Esqueceu-se do livro. Céus, como são feias! Tão tortas e ossudas. Nunca havia se dado conta de como suas pernas eram feias. Pensou que, por toda a sua vida, aquelas toras grotescas o levaram pra cá e pra lá. Será que mais alguém reparou nelas? E os pelos? Pretos, espessos, tão enrolados. Daria pra abrir uma trilha entre eles.
 Levantou-se sem se importar com o livro que caiu sobre um pacote de salgadinhos. Foi ao banheiro e pegou a gilete que naquela manhã nem havia usado. 
Voltou para a sala e sentou-se no mesmo lugar. Começou no peito do pé e subiu em linha reta até a metade da canela. Uma faixa de pele extremamente branca surgiu em meio àquela floresta de pelos negros.
 Fez, então, um zigue-zague até o joelho. Linhas sinuosas, pontilhadas, círculos! Passou para a outra perna, se empolgou. Quase febril, subiu para as coxas, desenhando linhas em todas as direções. Linhas grossas, finas. Retas, curvas!
Olhou extasiado para suas pernas, telas! Cravou a gilete num joelho a fim de fazer um círculo e acabou se cortando. Porra!
 Resmungou enquanto um filete de sangue escorria pela sua perna, avermelhando sutilmente as trilhas que ele há pouco criara.
 Ficou fascinado com o efeito que essa terceira cor dava às suas pernas telas. E como descia sinuoso e indolente, o líquido quente. Serpente vermelha.
 Com a mão um pouco trêmula e já suando um pouco, fez um corte no outro joelho, um pouco mais profundo. E outro, mais abaixo, à esquerda. E outro. E os filetes de sangue escorriam por todas as trilhas, se juntavam e se bifurcavam feito línguas incandescentes.
 A gilete perdeu o corte. Deixou-a cair no chão, impotente.
 Admirou sua obra-prima por alguns minutos. Vestiu suas calças, enfiou um par de chinelos e saiu.
 Precisava comprar uma gilete.
 O tédio finalmente o deixara.



***

Nenhum comentário:

Postar um comentário