Sou uma pessoa de poucas palavras e muitas entrelinhas..
sábado, 22 de janeiro de 2011
Jardim Maculado
Lá no meu jardim
Entre uma flor e outra
Erva daninha fez morada
Como rosa disfarçada
Sonsa,dissimulada
Espalhando seu veneno
Peçonhenta, desalmada
Foi ceifando tudo
Vertiginosa, determinada
Obscura, endiabrada
Definhou-se a rosa
Definhou-se o cravo
Ressequiu-se o verde
Palha seca, desencantada
E o perfume inebriante
Perdeu-se todo, sobrou nada
Em seu lugar avolumou-se
O aroma fétido do enxofre
Lá no meu jardim
Entre uma flor e outra
Erva daninha fez morada
Reina, agora, soberana
Proliferando suas garras
Seiva maldita, ceifando tudo
Do meu jardim, restou nada
+++
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
Injustiça
Maldita dor que consome
Rasga feito devasso punhal
Uma existência tão débil
Espetacularmente banal
E ainda assim
Há tempo para sofrer
Ora, apenas os grandes deveriam sofrer!
Somente a eles, os grandes momentos de dor!
Pois não são os protagonistas do majestoso espetáculo?
Por que deveriam sofrer os reles mortais que habitam as coxias?
Se as glórias nunca ultrapassam os limites do palco
Não deveríamos sofrer
Nós, os coadjuvantes!
Inspirado no filme "Diamante de Sangue"
Cerca de 50 mil pessoas morreram durante a Guerra Civil de Serra Leoa,na década de 1990. Conflito financiado pelo contrabando de diamantes.
***
sábado, 8 de janeiro de 2011
Sinistro Amor
Uma brisa leve soprava fazendo revoar as folhas de outono,o fim de tarde avermelhado banhado por um resto de Sol indolente dava à cena um colorido espetacular que não condizia com o momento. Ao redor do túmulo duas dezenas de pessoas pesarosas ouviam as últimas palavras do padre antes que o caixão do jovem descesse à sepultura. Alguns mal conseguiam olhar para aquela mãe,outros,
morbidamente,não lhe tiravam os olhos.
E lá estava ela,não conseguia chorar porque ainda não acreditava.
Olhava para a caixa de madeira à sua frente e não lhe cabia que ele estivesse ali. Aliás, o que sobrara dele. Reconhecer seu filho, seu lindo filho,naquele arremedo de gente retorcido,enegrecido pelas chamas.
Não. Seu filho era aquele que chegava todas as tardes,mochila nas costas,azul nos olhos, tênis e chiclete.
O garotinho não olhava,segurava na mão da mãe e contava as folhas no chão. Talvez não concebesse o vazio. E tão pouco tempo depois! Ainda podia sentir o mesmo cheiro de flores e velas, ouvir as mesmas palavras,os mesmos olhares consternados. Pobres órfãos de pai! Lembrou-se do irmão segurando sua mão como fazia agora sua mãe,olhou de relance para o caixão,tão parecido. Ousou olhar para sua mãe.Por que não chorava? Se antes explodiu em lágrimas e lamúrias!
Todos ,pouco a pouco,se despedem da cena voltando às suas rotinas;deixando abraços,beijos,apertos de mãos,afagos na pequena cabeça.Sozinhos,enfim,o menino puxa sua mãe. Quer tirá-la dali,levá-la para casa.
A casa. Ficara intacta. A mulher desabou numa poltrona,exausta. De onde estava podia ver,através da grande janela,os escombros do que fora a garagem. Um galpão construído por seu marido,reduto dos homens da casa. Seus homens. Não desviou o olhar, era ali que seu filho guardava sua vida de adolescente,seus sonhos,segredos,seus erros. E o maldito carro.
O menino,intrigado,tentava entender aquele silêncio. Achou que sua mãe estava mais velha,parecia tão cansada.
O que poderia fazer? Queria de alguma maneira confortá-la,traze-la de volta. Foi até à cozinha e achou que um chá lhe faria bem,pelo menos era assim que ela também o confortava quando ele ficava doente. Subiu na cadeira para pegar o pote de ervas,encheu a chaleira de água para ferver. Acendeu o fogo.
Colocou a chaleira sobre a chama e esperou. Suas pupilas refletiam o clarão do fogo que observava. O mesmo fogo que observara há dois dias,da janela do seu quarto.
Foi tão rápido,o irmão nem conseguiu gritar. Depois da explosão as chamas altíssimas iluminaram o céu.Também lembrava do cheiro. Viu,da sua janela, a mãe correndo em direção à garagem, alguns vizinhos tentando segurar a mulher desesperada.
Foi tão fácil! Todo fim de tarde ele ficava lá,com sua música,fuçando no seu valioso carro.
Teve alguma dificuldade para abrir o gás,eram dois botijões armazenados nos fundos da garagem,sobre um tablado. Também teve o cuidado de deixar as duas janelas fechadas. Ficou no seu quarto,montando seu quebra-cabeça. Na hora certa abriu as cortinas e assistiu.
O irmão entrou pela pequena porta lateral,como sempre fazia. A mão foi mais rápida do que a percepção do cheiro. Bastou o toque fatídico no interruptor. Foi fácil.
Livrar-se do outro foi mais difícil. E menos divertido.
Despejou a água fervente na xícara. Cuidaria de sua querida mãe para sempre.
Ela ainda estava lá,sentindo o peso do mundo sobre os ombros. Ergueu os olhos para o seu único filho que lhe oferecia uma xícara de chá fumegante e acolhedor. E viu através do vapor que exalava do líquido um olhar tão cheio de amor que a fez,finalmente,chorar.
+++
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
O Corvo
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!
Edgar Allan Poe, por Fernando Pessoa
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